19 junho, 2015

Tragédias em Spa-Francorchamps

Vou fazer um cross-post do meu outro blog, porque o assunto lá é pertinente aqui. Infelizmente vai só de textão mesmo, sem links nem imagens (estou no trabalho, e esse é o limite que eu me permito de fingir estar trabalhando :P).

Aliás, olá, como vão?

No dia 19 de junho de 1960, o australiano Jack Brabham venceu o Grande Prêmio da Bélgica em Spa-Francorchamps. Esta corrida foi marcada pelos acidentes fatais dos pilotos Chris Bristow e Alan Stacey, a primeira e única vez em que dois pilotos faleceram numa mesma corrida de Fórmula 1.

O circuito de Spa-Francorchamps usado atualmente possui 7004 metros de extensão, e é o maior circuito do calendário da Fórmula 1. No enanto, é um mero resquício do seu desenho original. Inicialmente, a pista de corridas de Spa-Francorchamps foi desenhada ao longo das estradas na região de Ardenes que perfaziam um triângulo, ligando nos seus três vértices as cidades de Francorchamps, Malmedy e Stavelot, passando por várias aldeias e vilas no caminho, como Masta, Mé, Burneville, Cheneux e Rivage, que davam nomes às curvas. Neste percurso, de mais de 15 km, os pilotos percorriam longuíssimas retas e curvas de raio longo. A primeira corrida oficial foi realizada em 1922, e a primeira edição das 24 Horas de Spa (em 1924 e disputada até hoje) tomou lugar nesse traçado.

Em 1960 a corrida seria disputada num traçado mais curto e mais veloz: a antiga subida até o topo do vale da Água Vermelha que terminava em uma curva fechada em U foi cortada por um S rápido em subida ligando diretamente o cotovelo da La Source com a reta Kemmel, tomando a forma da atual curva Eau Rouge; onde a estrada que vinha de Masta chegava em Stavelot, ela voltava através de um retorno fechado em direção a Francorchamps (trecho por onde passa a atual curva Blachimont e leva à reta dos boxes). Ali foi desenhada uma curva aberta e veloz ligando diretamente as duas retas.

Essa reforma da pista, feita nos anos 50, ainda conservava as características de uma estrada pública comum: a pista era bordeada por calçadas, postes, cercas e casas, ocasionalmente com alguns fardos de feno separando espectadores de carros atingindo 280 km/h. Em caso de acidente, as longas distâncias dificultavam o socorro, tanto na parte de comunicação, como no acesso de ambulâncias à pista e o transporte aos hospitais mais próximos. Era um circuito muito veloz, e muito perigoso, mas até aquele ponto, nenhum piloto da categoria havia se acidentado gravemente ali. E os pilotos de corrida daquele tempo aceitavam o perigo como parte do esporte.

Na vila de Burneville a estrada entre Francorchamps e Malmedy fazia uma longa curva à direita de cerca de 800 metros em descida. Perto do seu ápice e da sua saída, a pista era rodeada de barrancos dos dois lados. No lado de fora, o barranco chegava a 4 metros de altura, terminando numa casa e em uma passagem de carros, onde em 1966 a Cooper do suíço Jo Bonnier acabou pendurada depois de uma rodada. "Reta" é uma definição grosseira da pista que vinha antes da Burneville. Saindo da reta Kennel, a maior reta do traçado atual, onde hoje se faz um S fechado à direita antigamente se tomava à esquerda, e a pista seguia por mais de um quilômetro com leves desvios para um lado e para o outro, de maneira que o piloto tinha pouco tempo para alinhar a direção e fazer uma tomada segura no curvão. Num tempo em que os recursos aerodinâmicos eram basicamente inexistentes - os carros eram como charutos com rodas, cuja superfície de contato com o asfalto era bem menor do que o pneu de um carro de rua atual - a estabilidade do bólido nas curvas dependia do controle do piloto na direção, e no trabalho de freio, acelerador e câmbio, tracionando o tempo todo e forçando a parte traseira a orientar o carro no traçado correto.

Durante os treinos, o principal piloto de fábrica da equipe Lotus, o inglês Stirling Moss, rodou e bateu na Burneville devido a uma quebra na transmissão, sendo ejetado no gramado ao lado da pista, com fraturas nas duas pernas, no rosto e na coluna. À medida em que outros pilotos passavam pelo local, alguns paravam para prestar socorro. Àquela altura todos no circuito sabiam do acidente de Moss e o socorro estava sendo prestado, mas quase ao mesmo tempo, outro piloto da Lotus, Mike Taylor, se acidentara em outro ponto da pista, fraturando o pescoço. Demorou para darem falta dele, e mais de meia hora para uma ambulância chegar. Tanto Moss como Taylor sobreviveram, mas enquanto o primeiro voltaria a correr ainda naquele ano, o segundo ficou tetraplégico.

Ainda um jovem na época, Jim Clark, que viria a criar uma reputação de um piloto inabalável e infalível, tremeu nas bases ao ver dois companheiros de equipe correndo risco de morte por causa de falhas mecânicas. Ele largava na décima posição, no meio do grid. A largada foi autorizada com mecânicos ainda na pista. Na volta 13 ele viu outra Lotus, de Innes Ireland, rodar furiosamente no curvão Burneville, dando cinco giros antes de parar atravessado. Ao engatar a primeira, Ireland pensou que o câmbio tivesse quebrado. Ele acelerou fundo, e de repente as rodas giraram e ele foi catapultado para baixo do barranco. Ele nada sofreu.

Chris Bristow era um piloto jovem e ferozmente competitivo, que largara à frente de Clark no seu quarto Grande Prêmio Poucos minutos depois do abandono de Ireland, pilotando uma Cooper en perseguição à Ferrari de Willie Mairesse, Bristow entrou na Burneville pelo lado de fora. Ele teria tentado trazer o carro para dentro, mas perdeu o controle e capotou várias vezes, quase acertando Mairesse. Aparentemente, quando seu carro parou fora da pista, na parte de dentro da curva, em chamas, ele já estava morto - seu corpo todo quebrado foi arremessado na direção de uma cerca de arame farpado, que decepou sua cabeça. Clark disse que quase desistiu de correr de uma vez por todas quando viu seu corpo arrastado por um fiscal como um boneco de pano, e depois ao constatar sangue no seu próprio carro, não se sabe como. Ele passou a detestar o circuito de Spa até o fim da vida.

A fatalidade não interrompeu o Grande Prêmio. Jack Brabham seguia firme na liderança com outra Cooper seguido de longe pelo companheiro de equipe Bruce McLaren. Alan Stacey vinha em sexto, com mais uma Lotus. Stacey tinha ido com Ireland ao hospital na noite anterior visitar Mike Taylor. Taylor e Ireland estavam escalados para dividir um carro nas 24 Horas de Le Mans, e Taylor oferecera na ocasião seu lugar a Stacey. Este Alan Stacey tivera parte da perna direita amputada na adolescência por causa de um acidente de moto, e corria com uma prótese. Era muito difícil para ele acelerar e usar a embreagem com o mesmo pé, como faziam os outros pilotos. Mesmo tirar o pé do acelerador exigia que ele movimentasse todo o quadril dentro do cockpit.

Apenas 5 voltas depois do acidente fatal de Bristow, Alan Stacey saía da Burneville poucos metros depois dos destroços do carro de Chris Bristow, com aceleração total, a 190 km/h. Foi quando um pássaro passou na sua frente e acertou em cheio o seu rosto. Os pilotos usavam capacetes abertos (alguns usavam apenas gorros de couro) e óculos. Ele perdeu a consciência com o impacto. Seu carro deu uma guinada para a esquerda, atravessou alguns arbustos, e caiu numa ribanceira, pegando fogo. Quando o socorro chegou, ele estava morto.

A corrida seguiu até o final com vitória de Brabham, futuro campeão daquele ano. O mesmo traçado de Spa-Francorchamps seria usado continuamente até 1969, quando toda a organização do campeonato decidiu boicotar a corrida por falta de segurança. Em 1979 ele ganharia o seu traçado básico atual, excluindo toda a parte veloz entre Malmedy, Burneville, Masta e Stavelot. Em 1966 o futuro tricampeão Jackie Stewart sofreu um acidente na mesma curva Burneville - pilotando no seco, encontrou a pista subitamente molhada na curva devido à chuva naquele ponto e perdeu o controle do carro, caindo da ribanceira sobre o telhado de um celeiro - e a partir daquele momento ele lideraria o movimento dos pilotos pelo aumento da segurança nos carros e circuitos que levou ao desenvolvimento de um esporte automobilístico tremendamente mais seguro.

25 setembro, 2013

Rush, ou de como é realizar o sonho de uma vida

Primeiro de tudo, peço duas desculpas. A primeira, por ter deixado este blog às moscas. Prioridades da vida que se impõe sobre outros projetos. A segunda, porque não pretendo continuar a atualizar isto aqui por enquanto, de maneira que este não é o meu "comeback", embora esta fosse a melhor oportunidade para dar uma turbinada nos acessos. Ah, e uma terceira por ser algo tão pessoal, quase uma autobiografia que culmina na noite de ontem.

Você tem algo que sempre quis? Quando digo "sempre", quero dizer sempre mesmo, não algo que você descobriu há duas semanas ou há 10 anos e, desde então, o desejou. Algo que você deseja desde que você se lembra de ter se dado por gente?

Desde que eu me dei por gente eu amo Fórmula 1. Não tem explicação, não tem um fato motivador, como ir a um autódromo, ou assistir uma corrida lendária de algum piloto carismático, nem por causa de Piquets e Sennas, nem seguindo uma campanha publicitária sedutora, nem através de amigos; já estava lá quando eu despertei para esta consciência. Meus ídolos da infância (tirando o Zico, que é foda) não eram jogadores de futebol, eram pilotos de corrida. Eu queria ser como eles e fazer o que eles fazem.

Ao longo da vida entendi que aqueles homens eram feitos de uma fibra muito diferente. Duvido que mesmo que meu pai tivesse dinheiro e investisse no meu desejo pueril de pilotar, eu não chegaria mais longe do que a maioria dos pilotos aspirantes consegue chegar - até onde dá o dinheiro, ou até encontrar algo melhor pra fazer. Porque um Niki Lauda, um Alain Prost, um Ayrton Senna não são a maioria, não são um qualquer. Eram os melhores no que faziam, muito melhores do que os seus colegas, que já eram a elite dos pilotos de corrida. Como tudo na vida, você deve se esforçar para ser o melhor no que faz, mas o talento vai decidir se você será o melhor. E o que resta aos mortais é a satisfação da auto superação. Meio pessimista, mas é o que nos faz adotar pessoas extraordinárias como ídolos, sombras do nosso próprio superego.

A primeira pessoa famosa de que eu me lembro conhecer foi Niki Lauda. Provavelmente por influência do meu pai, que era fã do austríaco, provavelmente também porque ele fez um campeonato magnífico em 1984, ano em que eu me tornei um telespectador regular da categoria, aos 5 anos. É engraçado como funciona a cabeça da criança: eu conhecia o Niki Lauda, mas não sabia quem era fora do capacete e do vermelho e branco da McLaren. Achava que qualquer piloto era o Niki Lauda. Senna concedendo entrevista numa cama de hospital após um heróico sexto lugar no GP da África do Sul de 1984, e eu tentando entender como o Niki Lauda falava português tão bem. Lembro do Galvão Bueno saudando Niki Lauda na sua última corrida, no ano seguinte, e minha memória construiu um Lauda abandonando a corrida, acenando para o público e entrando num helicóptero para deixar aquele mundo e voltar para casa. Não sei o quanto disso é verídico ou inventado ou reconstituído de cenas soltas e independentes, mas posso ver a imagem na minha cabeça enquanto escrevo.

Niki Lauda teve uma história formidável na Fórmula 1, que eu fui aprendendo com o tempo. Uma ascenção rápida, um título mundial, um acidente quase fatal, seu retorno um mês e meio depois, mais um título mundial, o embate com Bernie Ecclestone (que, na sua biografia, alega ter sido a única vez em que ele se deu mal numa negociação com pilotos, quando Lauda foi para a Brabham e depois saiu porque estava de saco cheio de correr com um carro ruim), sua aposentadoria, sua empresa de transporte aéreo, seu retorno visto com ceticismo e seu último título mundial. Em parte aprendido em literatura, em parte pelo que meu pai relembrava dos anos 70.

Eu sempre consumi Fórmula 1. Foda-se se é cheeseburger de capitalismo com gordura trans. Na TV, nos meus brinquedos; um autorama do Nélson Piquet, carrinhos Matchbox, revistas, modelos de montar da Tamyia, álbuns de figurinha, vídeo games (desde o Enduro no Atari e das fichas gastas numa máquina de Pole Position quando eu nem tinha altura para usar o volante e apertar os pedais ao mesmo tempo, e atualmente no Formula 1 2009 no PSP, que eu jogo nas minhas longas viagens de ônibus pela cidade, fingindo que os solavancos e curvas são reações do meu carro). Fui ao autódromo assistir os treinos de sábado do GP do Brasil de 1984 e à corrida em 1987. Eu podia passar um dia inteiro simulando uma corrida com meus carrinhos numa pista desenhada numa prancha de madeira. Até andar de bicicleta (uma Barraforte preta) era um pretexto para que eu fosse o Senna na Lotus e disputasse um Grande Prêmio com meus amigos em volta do meu prédio. Andar num kart com motor de cortador de grama por R$15,00 (em valores da época, em cruzeiros, cruzados, cruzados novos, cruzeiros de novo, cruzeiros reais...) num terreno irregular perto de casa era glorioso. Lembro de todas as sensações das duas vezes em que andei num kart de estacionamento mais "profissional", já na faculdade, inclusive da batida que me jogou longe e deu um preju no dono do negócio (o ex piloto Guga Ribas) com um chassi destruído :^P

Um ponto marcante nessa minha vida ligada à superfície da Fórmula 1 foi quando fui apresentado ao filme Grand Prix, de John Frankenheimer, quando conheci - com a assessoria do meu pai - uma época ainda mais antiga. O barato do filme é que, em volta dos atores principais e das historinhas de romance, estavam lá os próprios pilotos da Fórmula 1 daquela época, e cenas filmadas nos próprios grandes prêmios de 1966. Filme legalzão, que valeu cada centavo quando comprei o DVD, já adulto, com fios brancos na barba e dores nas costas. Mas quando eu era criança, Grand Prix era muito distante para mim. Eu conhecia Jim Clark, Graham Hill, Jack Brabham, John Surtees, mas eles eram apenas figurantes ali (que eu não reconheci até ter mais conhecimento do assunto, anos depois), então a sensação de "oh, que legal, são os caras!" nunca me atingiu como atingiu o meu pai e as pessoas da sua geração. O enredo do filme gira em torno de romances de personagens fictícios e rivalidades que parodiam e mesclam histórias verídicas acontecidas em vários momentos diferentes da história da Fórmula 1. Diante das imagens espetaculares das corridas, mesmo as cenas filmadas com carros de Fórmula 2 maquiados e dublês (menos o do protagonista James Garner, que, segundo o instrutor de pilotagem do filme, poderia ter sido um piloto profissional e dispensava dublês na maioria das cenas), o enredo é o ponto fraco do filme. Fosse um filme sobre o título mundial de Phil Hill (que atuou como dublê) após a morte do seu concorrente direto e companheiro de equipe Wolfgang von Tripps na última corrida do ano (um dos elementos transportado para o enredo de Grand Prix) talvez tivesse outro efeito, em outro momento.

A Fórmula 1 é cheia de histórias interessantes. Aquela coisa do piloto de ponta ser constituído de uma fibra diferente resultou em momentos extraordinários dentro e fora das pistas que merecem livros. Ou filmes. E eu sempre, sempre ansiei por isso. Um filme fiel aos fatos... não como aquela coisa ridícula do Sylvester Stallone - o homem com o pior biotipo possível para um piloto de monopostos - resolvendo suas diferenças com um rival levando dois Reynards da Indy para uma estrada movimentada...

Então veio Rush. Rush juntou tudo isso que eu escrevi acima, misturou tudo, e jogou tudo na minha cara durante duas horas em que eu nem consegui me mexer na cadeira - eu estava ocupado demais para me importar com meu próprio corpo. Eu poderia contar o filme e apontar minhas partes favoritas, porque, afinal, a história é de domínio público e eu já dedurei vários pontos aí em cima, mas como ele é um veículo para que leigos se aproximem do esporte, prefiro apenas dizer que, mesmo sabendo de toda a história do filme de antemão, não tive como não sorrir por duas horas vendo um dublê de James Hunt queimando borracha num M23 reformado, de ver Marchs, Heskeths, Ferraris, Lotus, Brabhams recriados à perfeição, assim como os atores mudos que "enchiam" o grid - reconheci até a magnífica barba de Harald Ertl na cena do briefing do GP da Alemanha - e vestiam seus cascos facilmente reconhecíveis em situações verídicas - os dublês na cena do resgate usavam os capacetes dos pilotos que estavam presentes quando aconteceu. Não tive como não esmagar a mão da minha esposa enquanto a segurava quando Lauda bate em Nurburgring, e nem como não chorar quando ele retorna às pistas. Eu fui transportado para fora do tempo, me tornei criança e adulto, regressei à minha infância e a uma época anterior a mim, que eu frequento em pensamento. Eu estava vendo um filme e analisando a atuação de Chris Hemsworth e Daniel Bruhl, e estava vendo James Hunt se apegando à única atividade em que ele se sentiu confortável em fazer em toda a sua vida autodestrutiva, e um Niki Lauda consciente do seu próprio talento e dos seus próprios limites. O filme cumpriu o seu papel de me tirar da realidade por duas horas e me jogar num mundo de sonho, intenso, irracional, fora do meu controle. Não vou questionar se o enredo romanceado forçou a barra aqui ou ali ou deixou de ser fiel a este ou aquele fato, porque não tem a menor importância para mim. Quando as luzes se acenderam, eu senti a leveza e o alívio de alguém que esperou a vida inteira para poder, metaforicamente, quase espiritualmente, fazer parte daquilo.

06 agosto, 2009

Hellé-Nice - Cabaré, escândalo, e velocidade

Desculpem por retroceder mais uma vez à era pré-Fórmula 1. Mas já tá feito :^P

Mariette Hélène Delangle nasceu em 15 de dezembro de 1900, em Aunay-sous-Auneau, na França, filha do carteiro local. Em sua adolescência, viu o mundo da Europa colonialista ruir sob o peso da Primeira Grande Guerra - as mulheres, antes relegadas a um status inferior na sociedade francesa, ou restrita a pequenos serviços ou à vida de esposa e dona de casa, agora eram recrutadas como mão de obra na indústria, enquanto a população masculina adulta era dizimada no front. Mariette, com temperamento rebelde, e, de certa forma, beneficiada por essa reviravolta social, tornou-se uma conhecida dançarina do Cassino de Paris, onde adotou o pseudônimo Hellé-Nice.

Essa personalidade, que causava escândalo, era temperada pelas companhias masculinas, através das quais Hellé-Nice desenvolveu o gosto por carros. Mas não apenas por admirá-los, mas sim por acelerá-los em alta velocidade! Durante os anos 30, Hellé-Nice conseguiu um Bugatti T35C e passou a participar de Grandes Prêmios e outras corridas internacionais importantes, competindo contra os maiores de seu tempo, como Achile Varzi, Tazio Nuvolari, Raymond Sommer, Luigi Fagioli, Louis Chiron, Piero Taruffi e Jean Pierre Wimille. Depois de um ano apenas chegando ao final das corridas, em 1934 ela adquiriu um Alfa Romeo "Monza", pintado de azul. Sua constância em participações, sua segurança na condução do carro, e seu jeito extrovertido fora das pistas (e o curioso hábito de correr de boca aberta, apesar dos insetos...), a tornaram uma personalidade conhecida entre os fãs das corridas de automóvel.

Em 1936, ela se inscreveu para o Grande Prêmio do Brasil, a ser disputado no Circuito da Gávea, conhecido como o "Trampolim do Diabo", localizado nas ruas da Zona Sul da cidade. Um Rio de Janeiro dourado, que conflitava entre a irreverência e o conservadorismo, recebeu Hellé-Nice com espanto. Não era de bom tom uma mulher guiar um carro de corridas. Nem mesmo seus hábitos de fumar em público e usar calças passaram despercebidos. Com seu Alfa azul, competindo contra Carlo Pintacuda, Chico Landi e o pioneiro Barão de Teffé, ela terminou a prova em oitavo. A impressão deixada por aquela mulher ousada, mesmo não obtendo um resultado brilhante, foi tão forte, que a partir daquela época, muitas meninas foram batizadas como Helenice (incluindo uma professora minha).

Os competidores do GP do Rio foram convidados para a realização do Grande Prêmio de São Paulo, dois meses depois. A corrida seria realizada num retângulo que compreendia a Rua Colômbia, a Rua Estados Unidos, a Rua Canadá, e tinha a linha de chegada na Avenida Brasil, numa área residencial da capital paulista. As duas Alfa Romeo da equipe oficial de Carlo Pintacuda e Attilio Marinoni eram as favoritas, como haviam sido na Gávea - Pintacuda liderava com folgas quando teve problemas mecânicos. O Barão de Teffé corria por fora, e Hellé-Nice era quem atraía a maior curiosidade do público.

A corrida se iniciou com atraso, pois o governador de São Paulo Armando de Sales Oliveira, que desceria a bandeira para a largada, ficou preso no trânsito (isso já em 1936!). O público se apinhava nas calçadas e ruas de acesso ao circuito, bem como nas janelas dos edifícios ao redor, ansioso por aquele que seria o maior evento automobilístico da história da cidade. Logo após a largada, as duas Alfas vermelhas dispararam na ponta. Hellé-Nice saltou para um surpreendente terceiro lugar, seguida pelo italiano da Bugatti, Vittorio Coppoli (vencedor no Rio dois meses antes), Teffé e o jovem Chico Landi. Em certo momento, Marinoni rodou e ficou parado na pista, sem conseguir arrancar. Pintacuda, o líder, veio em seguida e, com o próprio carro, empurrou o companheiro de equipe de volta para a disputa. Enquanto isso, Hellé-Nice teve que fazer um reabastecimento, caindo para a quarta posição.

A francesa vinha recuperando terreno, e, tirando cerca de 5 segundos por volta, voltou à disputa pelo terceiro posto contra Teffé. O aristocrático piloto brasileiro "embarrigou" na esquina da Rua Canadá com a Av. Brasil, o que permitiu o bote da Alfa azul de Hellé-Nice. Os dois cruzaram a linha de chegada emparelhados, abrindo a última volta da corrida.

Então algo não muito bem explicado aconteceu. Aparentemente, uma briga entre torcedores e policiais à beira da pista, ou talvez até um fã alucinado do Barão, resultou num fardo de feno, usado para proteção no meio fio, sendo jogado no meio da pista. Hellé-Nice atingiu o fardo de feno a cerca de 160km/h. Seu carro foi catapultado para fora, capotando duas vezes, e atingindo a multidão. Cerca de 6 pessoas faleceram com o impacto, e mais de 30 ficaram feridas. A piloto foi lançada para fora do carro no primeiro momento, e seu corpo atingiu um policial, que absorveu grande parte do impacto. Hellé-Nice sofreu traumatismo craniano e ficou dois meses internada, mas o guarda que involuntariamente lhe salvou a vida, veio a falecer em decorrência dos ferimentos. Traumatizada, Hellé-Nice, a principal mulher piloto dos anos dourados dos Grandes Prêmios, nunca mais participou de competições oficiais. Ela faleceu em 1984 de causas naturais.

Fonte: The Golden Era of Grand Prix Racing 1934-40

30 março, 2009

Paixão

A essa altura todos já sabem do resultado do Grande Prêmio da Austrália, na madrugada de sábado para domingo. Não se fala de outra coisa. Nem o terceiro lugar que Lewis Hamilton herdou com a desclassificação de Jarno Trulli, com uma McLaren deficitária, nem a estréia do KERS, nem as quebras das duas Ferrari, nem a questão dos difusores, tem o mesmo destaque que a dobradinha da equipe Brawn GP. E é natural isso, evidentemente, afinal não é uma coisa que se vê todo dia.

A equipe de Ross Brawn conquistou sua primeira pole e primeira vitória logo na sua primeira participação. Um feito histórico comparável ao da Mercedes no Grande Prêmio da França de 1954, e da Wolf em 1977. Jenson Button dominou de forma inconteste a corrida, enquanto Rubens Barrichello escalou posições após ter experimentado problemas na largada e sido obrigado a trocar o bico do carro. Esse desempenho mostrou que o carro nasceu, de fato, melhor do que os outros. Com a restrição de testes durante a temporada, as demais equipes terão pouco espaço de manobra para implementar melhorias e tentar alcançar a Brawn nas próximas corridas, então podemos já qualificá-los como favoritos, pelo menos até a chegada à Europa.

Mas o que mais me chamou a atenção em tudo isso é o significado dessa vitória. Talvez a glória de Ross Brawn em sua estréia como construtor, ou a alegria de Button por sua segunda vitória, sejam ofuscadas pela importância que este resultado tem para a Fórmula 1 como um todo! Como eu mencionei au passant no último texto, a categoria esteve sob domínio quase total das mesmas equipes (algumas recuando durante um período, avançando em outro) há vários anos. Essas equipes - vou citar, por enquanto, Ferrari, Renault e McLaren, mais depois - são times extremamente profissionais, com enorme suporte financeiro, miniaturas de grandes corporações na sua estrutura interna. O seu domínio foi por uma aliança entre superioridade técnica e competência administrativa, e recursos para desenvolver todo o seu potencial. A superioridade técnica pode ser atribuída tanto à longa experiência nas competições quanto ao acesso a pesquisas realizadas pelas corporações "mátrias" de cada uma - FIAT, a própria Renault, e Mercedes, respectivamente.

A Williams, uma equipe "privada", não associada a grandes montadoras de carros, e que também colecionou vitórias nos últimos 10 anos, ao contrário do que o leitor distraído poderia concluir, apenas confirma essa tendência ao profissionalismo. Depois do título mundial de Jacques Villeneuve em 1997, a retirada do apoio oficial da Renault representou uma queda gradativa de rendimento que perdurou até a associação da equipe com a BMW. Então, as vitórias voltaram. Mas com a retirada da BMW em 2006, novamente a Williams despencou no grid, enquanto a Sauber, comprada pela montadora alemã, se tornou a nova força ascendente da categoria. Mais uma vez, parecia claro que o futuro para quem quisesse se manter competitivo seria vender sua "alma" a alguma grande corporação. A Jordan, por outra mão, também ficou para trás na medida em que seu proprietário, Eddie Jordan, se recusou a vender parte de sua equipe à Honda. Mas, neste caso, não houve uma segunda chance.

A história da Brawn GP vai na contramão disso tudo, e o que se desenha é uma história épica, dessas que resultam numa mudança de paradigmas.

A Honda - a grande corporação que tomou posse da BAR, que bem ou mal podia ser considerada uma "garageira" - anunciuou em dezembro que não participaria do mundial deste ano (mesmo com o carro já pronto!) e que a estrutura da equipe estava à venda. Foi mais de um mês de negociações com vários grupos, enquanto os funcionários iam trabalhar sem ter a certeza de que estariam empregados no dia seguinte (dois deles, Button e Barrichello, já estavam virtualmente desempregados). Surge então um grupo que inclui Nick Fry, Ross Brawn, e outros funcionários de Brackley e adquire o controle da equipe. A Honda honrou seus compromissos financeiros, mas a partir dali, Brawn e cia. estariam sozinhos nessa empreitada. O motor Mercedes foi um anúncio de última hora, e precisou da aceitação das demais escuderias para ser concretizado. Sem patrocínio, sem montadora dando suporte técnico, com apenas dois testes no currículo (a cujos resultados, ninguém em sã consciência daria crédito), e sem saber se teriam fôlego para viajar da Austrália para a Malásia, no clima mais aventureiro possível para a Fórmula 1 moderna, a Brawn GP venceu o GP australiano e despontou como a equipe a ser batida no começo do campeonato.

A Brawn GP está desmentindo muito do que se acreditava como uma tendência inexorável para o sucesso na categoria, se afirmando como uma equipe independente na liderança das demais. Há de se notar também a volta da Williams e a ascenção da Red Bull, que também são times que desenvolvem seus trabalhos por conta própria, embora esta última também conte com uma cornucópia de recursos financeiros e parcerias para tanto. Mas tudo indica que a associação a uma grande empresa do ramo automobilístico, nem sempre esta a assumir um compromisso com o esporte, usado em primeiro lugar para interesses mercadológicos e midiáticos, não é mais uma exigência. Pelo menos essas duas, Brawn e Williams, são equipes com coração, que não estão lá para perder dinheiro, mas também não encaram a Fórmula 1 como vitrine para negócios extra-pista. O que motivou Ross Brawn a apostar tudo num negócio sem a certeza de retorno, o mesmo que talvez sirva de incentivo ao veterano Frank Williams todos os anos, é a paixão pelo esporte, que estava em vias de desaparecer sob os sapatos de executivos.

Assinado: Monocromático, um torcedor da Brawn GP :^P

27 março, 2009

A fórmula da criatividade

Estive cultivando um longo período de silêncio, mas tenho estado a tento às notícias, crônicas e artigos sobre tudo que tem acontecido nos testes da pré-temporada deste ano. Até assisti, aos trancos e barrancos, os treinos livres em Melbourne na noite passada pela internet, pois aparentemente algo interessante está para acontecer na Fórmula 1.

Eu sempre fui a favor de regulamentos técnicos menos rigorosos. Cheios de brechas e vagos em alguns aspectos. Isso possibilita aos engenheiros e projetistas explorar essas brechas, procurar soluções novas e criativas para tentar melhorar o carro em um ou outro ponto que ninguém tenha tentado antes. Foram regras flexíveis que possibilitaram a miríade de formas vista durante toda a década de setenta, e, mais esporadicamente, nos anos oitenta (das bem sucedidas, como o Lotus 72 em forma de cunha, aos fiascos, como o modelo 56 da mesma escuderia, movido a turbina de helicóptero), a reintrodução dos motores turbo, e soluções que deram certo, como o bico "bigode" da Tyrrell de 1990 (pai legítimo dos bicos de tubarão usados até hoje), ou tinham o potencial para tanto até serem castradas por novos regulamentos, como os carros de 6 rodas, especialmente o protótipo da Williams de 1982. A Fórmula 1 sempre evoluiu, literalmente, nas entrelinhas de seu regulamento.

Na últimas 3 décadas a FISA/FIA cerceou, progressivamente, a criatividade dos homens das pranchetas com regras cada vez mais rígidas sobre a construção dos carros, desde a padronização das medidas de altura, comprimento, dimensões das asas, até a permissão e proibição de certos recursos mecânicos, eletrônicos, e alguns driving aids. Recentemente, chegou-se ao cúmulo de proibir qualquer tipo de motor que não seja um V8, deixando os eficientíssimos V10 e os legendários V12, 4L turbo e H16 enterrados na poeira da história. Nesta década, o único caminho que os engenheiros encontraram para tentar trazer um diferencial aos seus carros, aerodinamicamente, foi com a introdução de diversos apêndices dispostos ao longo do bico, dos estabilizadores das asas, e das laterais dos carros, que deixavam os bólidos com uma aparência questionável do ponto de vista estético.

Esse cerceamento teve como consequência um nivelamento jamais visto entre as equipes. Nunca os últimos colocados tiveram desempenhos tão próximos aos primeiros! Em termos de equilíbrio técnico, a Fórmula 1 atingiu o seu auge, mesmo sendo uma categoria onde a utilização de um mesmo chassis por mais de uma equipe é proibida (por sinal, isso foi uma das medidas adotadas nos anos 80, e bastante enfatizada nos últimos anos, quando a necessidade de cortar gastos tem pressionado pela adoção de fornecedores de chassis para equipes que não possam desenvolver seus próprios projetos). Mas ao invés de trazer emoção e aumentar a possibilidade de surpresas, o que se viu foi uma rigidez hierárquica. Embora uma Force India não fosse tão deficitária em relação a uma McLaren como a Minardi o era dez anos antes, ela jamais se viu em condições de brigar por posições com os carros prateados em uma situação normal de corrida. Embora próximas, as equipes continuaram engessadas, agora não a 1 segundo de distância dos líderes, mas a 3 ou 4 décimos insuperáveis. A Fórmula 1 "equilibrada" continuou dominada pelas mesmas grandes equipes: Ferrari, Renault/Benetton, e McLaren, com uma lenta e gradual ascenção da BMW/Sauber.

Ao longo desses últimos anos, a tendência foi a confecção de carros que buscavam a máxima aderência aerodinâmica, pois o regulamento, principalmente em relação aos pneus, impedia o desenvolvimento de meios de aumentar a aderência mecânica. Isso significa que a estabilidade de um carro depende dele estar recebendo um vento frontal adequado, e que, caindo numa onda de turbulência ou no vácuo do carro da frente, seu desempenho decresce, o que dificultou muito as ultrapassagens. As coisas melhoraram de dois anos para cá, mas ainda assim essa era a maior reclamação sobre a categoria. Para mudar isso e aumentar o interesse da audiência, a FIA tomou medidas drásticas. Mudou o regulamento de maneira radical em vários aspectos, forçando as equipes à pesquisa de novas soluções para, dentro dessa nova fórmula, encontrar as melhores respostas. Sem muita premeditação, os testes segundo essas regras começaram no meio do ano passado, com a Williams avaliando primeiro as novas asas, e a BMW assumindo a ponta no desenvolvimento do KERS. A McLaren e a Toro Rosso ainda usavam seus carros com as configurações do ano passado até algumas semanas atrás. E o mesmo KERS (que, em suma, é um sistema que armazena numa bateria a energia das freiadas, e permite o uso dessa energia para um aumento de alguns segundos por volta da potência do motor), que ainda é opcional, não será usado por todos os times.

Sem muitos parâmetros, cada equipe correu para um lado tentando a melhor solução, tentando chegar primeiro a um modelo que tirasse o maior proveito de todas as regras, e de todas as linhas vazias entre elas. E, até agora, já após iniciados os trabalhos na Austrália, o que se vê é que três equipes que exploraram uma reticência sobre o formato dos difusores traseiros estão obtendo os melhores tempos: Williams, Toyota, e Brawn, o coringa deste ano (e, no primeiro dia da Austrália, entremeadas pela Red Bull, que vinha tendo a supremacia nos testes de inverno, antes do desenvolvimento dos difusores dessas três equipes). Apesar de contestadas pela concorrência (que, tão logo se confirme a legalidade, estarão desenvolvendo suas próprias versões desses difusores, não tenho dúvidas), estamos testemunhando um daqueles casos em que a criatividade, permitida pela introdução de novas regras e pela sua flexibilidade em alguns pontos, gerou uma inovação que faz com que os carros de corrida atinjam um nível superior, avancem em uma nova direção. E, como em tempos passados, permitiu que a criatividade, não atrelada necessariamente ao poder econômico ou ao status quo técnico, alçassem concorrentes inesperados à posição de favoritos às vitórias, até que as grandes, como uma avalanche, encontrem o seu caminho na trilha aberta por eles.

Aconteça o que acontecer, vamos nos lembrar disso por muito tempo.

03 janeiro, 2009

Fórmula 1 em janeiro - África do Sul

Foto aérea do circuito de Kyalami
2009 começou, mas a Fórmula 1 só verá seu primeiro grid formado em 29 de março, para o Grande Prêmio da Austrália. Até lá, alguns testes, novidades no regulamento, e definições das últimas vagas para pilotos em algumas escuderias preencherão nosso tempo de espera.

Por conta do clima, as temporadas do Mundial geralmente começaram ou em corridas no hemisfério Sul (Brasil, Argentina, África do Sul, e, nos últimos 13 anos, Austrália), entre janeiro e março, iniciando-se apenas em maio quando a prova de abertura era realizada em algum circuito europeu. Por conta disso, a pré temporada (com hífem? sem hífem? junto? malditas regras novas), ou melhor, a pós temporada podia ser muito curta, pois tudo terminava em outubro, e logo em janeiro tudo tinha que estar pronto novamente.

Capa do programa oficial do GP sulafricano de 1975O GP da África do Sul, por muito tempo, teve a honra de sediar a abertura do campeonato, quase sempre em janeiro. Dois circuitos foram utilizados, o circuito Prince George, em East London, e Kyalami, no subúrbio de Johannesburg. Em duas ocasiões, 1965 e 1968, a prova foi realizada logo no dia 1 de janeiro - em 68 foram exatos 70 dias entre o GP do México do ano anterior e a corrida realizada em Kyalami.

Por ser uma prova em outro continente, e pelo curto tempo de preparação, algumas equipes decidiam não levar todos os seus carros, ou até não participar da prova (a Ferrari se absteve de participar do GP africano em 67), para se concentrar nos trabalhos de desenvolvimento para as corridas seguintes, na Europa. Com isso, o grid era preenchido por pilotos locais, que pilotavam seus própriso carros, adquiridos de construtores europeus, ou mesmo com suas próprias criações. Já escrevi sobre o zimbabuano John Love que, com uma Cooper antiga que nem sequer havia sido construída para disputar o Campeonato Mundial, passou perto de conseguir a vitória em "casa" na edição de 1967.

Peter de Klerk, um dos pilotos sul-africanos da edição de 1965 do Grande Prêio local, da equipe Ottelo NucciJaneiro é verão na África do Sul, que, ao contrário de outros países na mesma latitude, não possui um clima dos mais amigáveis para a prática esportiva nesta época do ano. Ao contrário, e falando especificamente de Kyalami, que fica no interior, as altas temperaturas, a baixa umidade do ar, e altitude elevada ocasionavam uma profusão de quebras, fadiga de equipamentos e pilotos, e situações bizarras. Mesmo localizada no litoral, East London derrotou Mike Spence, da Lotus, na edição de 1965; após uma hora e meia de intensa disputa com John Surtees, Graham Hill e Bruce McLaren, Spence se entregou ao cansaço e perdeu o pódio (Spence venceria na mesma pista no ano seguinte, quando o GP da África do Sul não contou pontos para o mundial). Já Jim Clark assombrou a todos com sua regularidade, pilotando no limite do início ao fim da corrida, quebrando récordes e vencendo com folgas. Aquela também foi a primeira corrida de Jackie Stewart, que ainda marcou um ponto.

Pace lidera o GP da África do Sul de 1975, com Scheckter em segundoA apoteose do GP sulafricano foi em 1975, quando Jody Scheckter, aproveitando-se de um problema nos freios de José Carlos Pace (que marcou a pole e a melhor volta), administrou a liderança e venceu a corrida. Era a primeira vitória de um sulafricano em casa, jogando para o limbo o feito anterior de John Love. Já em 77, o despreparo dos fiscais de pista custaram a vida de Tom Pryce e do bombeiro Jansen Van Vuuren, ao ser atropelado pela Shadow do piloto inglês, manchando a história do autódromo.

Kyalami em 1993East London era um circuito pequeno e relativamente lento localizado em um parque. Kyalami era mais longo e muito mais veloz, com uma longa reta principal com aclives e declives, onde era preciso dosar a aceleração para evitar problemas no motor em certos momentos. Kyalami deixou o calendário em 1985 - com vitória de Nigel Mansell - e regressou em 1992 - novamente vencida por Mansell - bastante desfigurado. Na sua última edição, em 1993, Alain Prost venceu com extrema facilidade após recuperar a liderança perdida para Ayrton Senna na largada (um belo duelo de duas voltas, que foi seguido por uma outra disputa acirrada entre o brasileiro e Michael Schumacher pelo segundo lugar), numa prova onde apenas 5 carros chegaram ao final, sendo apenas um deles, a McLaren de Senna, considerado, no início, candidato à vitória. Nem a pesada chuva que caiu nas duas últimas voltas abalou o domínio do francês.

Dizem que voltará a existir um Grande Prêmio na África do Sul. Ora dizem que será no circuito de rua de Durban, ora que será num Kyalami novamente reformado... não sei de nada. Tudo isso porque eu estou no Rio (onde também houve corrida em janeiro), morrendo de calor, e esperando que a temporada deste ano comece o mais rápido possível :^P

Fontes: Continental Circus (incluindo foto do programa), e Formula One Facts (fotos)

13 dezembro, 2008

Nas ruas do Rio

Traçado do Circuito da Barra da Tijuca, um dos últimos circuitos de rua do Rio de JaneiroEu vou pedir licença novamente para não falar sobre Fórmula 1, pelo menos diretamente. Depois de escrever alguma coisinha sobre o Circuito da Gávea, onde era disputado o Grande Prêmio Brasil, quero mostrar outra coisa interessante sobre a história do automobilismo brasileiro que eu, como morador do bairro por quase 20 anos, não conhecia, e como o Rio um dia foi tão importante para o seu desenvolvimento.

Para isso, logo de cara vou deixar este link aqui: http://www.obvio.ind.br/Circuitos%20de%20rua%20do%20Rio.htm. Uma das páginas do site dedicado a Anísio Campos, uma das locomotivas do automobilismo nacional, como piloto, designer e preparador de carros de rua e competição, promotor de eventos e divulgador do esporte. Nesta em questão, ele mostra o que foi o Circuito da Barra da Tijuca.

A li se disputavam corridas de marcas, com o grid cheio de carros de fabricação nacional (de montadoras estrangeiras e brasileiras), que veio a substituir o Circuito da Gávea como palco do principal evento automobilístico da cidade. O traçado era um retângulo, com as grandes retas das avenidas Armando Lombardi e Sernambetiba (que, para quem não conhece, é a avenida que percorre a orla da Praia da Barra), ligadas pelas transversais da Olegário Maciel (na época pavimentada com paralelepípedos, dos quais alguns ainda são conservados) e Rodolfo de Amoedo. A largada era na Armando Lombardi, perto da igreja (cujo fundador foi um padre italiano que tinha o mesmo sobrenome que eu, curiosamente) e de costas para a Pedra da Gávea, perfazendo o percurso em sentido anti-horário.

Entre as provas realizadas ali, destacava-se os Mil Quilômetros da Guanabara, e, embora não tivesse o relevo internacional das carreiras disputadas antes na Gávea, contava com o que havia de melhor entre os pilotos brasileiros, entre experientes e novatos: Chico Landi, com sua passagem pela Fórmula 1 e de vitórias em Grandes Prêmios na Europa, os jovens irmãos Emerson e Wilson Fittipaldi Jr., Piero Gancia, o patriarca da família, Luis Pereira Bueno, Bird Clemente, José Carlos Pace, e outros. Como as categorias de Fórmula no Brasil eram erráticas (com algumas provas aqui e ali de "categorias" diversas, ou apenas livres), quando não eram totalmente inexistentes, eventos como esses pavimentaram o caminho para a consolidação do automobilismo no país, e serviu como aprendizado e trampolim para os Fittipaldi, Luis Pereira Bueno e José Carlos Pace alcançarem grande sucesso na Europa e marcarem seus lugares na Fórmula 1 após um incrível hiato de mais de uma década entre a última prova disputada pelo velocíssimo Fritz d'Orey e a estréia de Emmo no Mundial. E pensar que hoje, quando, por causa desses audazes pilotos, foram construídos tantos autódromos fechados pelo país, tantos deles encontram-se em estado deplorável, tendo um dos principais deles, em Jacarepaguá, se transformado em um monstro perpetuamente desfigurado e aleijado que a prefeitura nem se digna a gastar dinheiro para destruir o que restou.

Para encerrar, um vídeo mostrando trechos das Mil Milhas da Guanabara de 1964, vencida na categoria Especial pelo "Seu" Chico Landi com seu Kharmann Ghia vermelho e branco equipado com motor Porsche 1.6, e na Geral por Luiz Pereira Bueno, com uma Berlinetta. Reparem na velocidade com que eles rasgavam as retas e escorregavam nas curvas, diante de uma multidão postada à beira da calçada. E como era bela e selvagem a Barra da Tijuca daqueles tempos...

26 novembro, 2008

La Donna è Mobile - Maria Teresa de Filippis

Maria Teresa de Filippis a bordo de uma Maserati, em Monza, 1958"Qual piuma al vento", Maria Teresa de Filippis escreveu um breve mas significativo capítulo da história da Fórmula 1. Esta bela mulher de Nápoles, hoje com 82 anos e avó de dois netos, se tornou, em 1958, a primeira mulher a disputar um Grande Prêmio válido pelo Campeonato Mundial de Fórmula 1. Longe de ser uma jogada de marketing, até porque, naquele tempo, ter uma mulher ao volante poderia ser, até, negativo para a reputação de uma escuderia, Maria Teresa conquistou seu espaço com resultados expressivos nas categorias nacionais da Itália pilotando um OSCA e uma Maserati particulares. Sua primeira vitória foi a bordo de um FIAT 500, só porque seus irmãos apostaram que ela não conseguiria ser mais rápida que eles ao volante.

A trajetória foi difícil, como era para qualquer mulher no mundo masculino da década de 50. No GP da França de 1958, já na Fórmula 1, foi impedida pelo diretor de prova a participar do evento, porque "o único capacete que uma mulher deveria usar é aquele do cabelereiro".

Capa do livro Sob influência do piloto da Ferrari, Luigi Musso, Maria Teresa foi contratada pela equipe oficial da Maserati para disputar provas de Fórmula 1, em 1958. Sua estréia foi em Spa-Francorchamps, largando em décimo nono e terminando em décimo. Ao todo, foram 7 participações em Grandes Prêmios (dois deles extra-campeonato, com destaque para um quinto lugar no GP de Siracusa), e 3 largadas válidas pelo mundial.

Em 1959, o piloto francês Jean Behra, responsável pela equipe Porsche na Fórmula 1, a convidou a pilotar seus carros. Maria Teresa não obteve classificação para o GP de Mônaco daquele ano, e, com a morte de Behra em corrida disputada em AVUS, ela decidiu abandonar o esporte. Constituiu família, e desde 1997 é vice presidente do Clube dos ex-Pilotos de Fórmula 1 e é presidente do Clube Maserati, comparecendo a eventos relativos ao tradicional construtor.

Maria Teresa em evento do Clube Maserati, em 2007Fã de Juan Manuel Fangio e Ayrton Senna, De Filippis foi a primeira das cinco mulheres a disputar corridas de Fórmula 1. Sua breve carreira na categoria pode não ter produzido resultados notáveis, mas, acima de tudo, representou uma quebra de tabus. A próxima mulher que romper os preconceitos que ainda existem por parte de patrocinadores e pessoas responsáveis pelo automobilismo de maneira geral poderá se lembrar de como tudo começou: com uma mulher que passou por cima de tudo isso para realizar seu sonho.

Fontes: Veloce Today (foto), 8W (foto), Crash.net, The Observer.

16 novembro, 2008

O Trampolim do Diabo

Hoje eu não vou escrever muito. E nem vou escrever sobre Fórmula 1 propriamente dita, embora ela tenha se envolvido nisso no final dos anos 40. Vou apenas deixar estes dois links aqui:

Circuito da Gávea: O "Trampolim do Diabo"

Galeria de Fotos: O "Trampolim do Diabo"

"Trampolim do Diabo" era o apelido pelo qual era conhecido o Circuito da Gávea, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Era um circuito de rua altamente desafiador, que passava pelos bairros da Gávea, Leblon (junto ao perigoso canal da Av. Visconde de Albuquerque, onde faleceu Irineu Corrêa em 1936), Vidigal (na bela Avenida Niemeyer, que serpenteia sobre o mar, rente a um costão rochoso), atravessava os morros da Rocinha e Dois Irmãos, e voltando para a Gávea.

O Circuito da Gávea sediou 16 vezes o Grande Prêmio do Brasil entre 1933 e 1954, quando ainda não fazia parte do Campeonato Mundial (ou melhor, quando nem havia um), com com algumas interrupções, e atraiu estrelas internacionais como Hans Stuck (com sua fabulosa Auto Union de motor traseiro), Achille Varzi, Carlo Pintacuda, Emmanuel de Graffenried, Luigi Villoresi, Juan Manuel Fangio, José Froilán Gonzales, Alberto Ascari, e a folclórica Hellé Nice, que causou escândalo e admiração no público carioca, tanto por ser uma mulher a pilotar carros de corrida como por fumar em público; muitas meninas nascidas a partir daquela época foram batizadas Helenice, em homenagem à piloto francesa. Também viu os pioneiros do automobilismo brasileiro mostrando a sua arte, como o Barão de Teffé, Rubem Abrunhosa, Irineu Corrêa, Benedicto Lopes (que é objeto de uma matéria da Folha de São Paulo de hoje) e o tricampeão Chico Landi.

O primeiro link que eu postei é um ótimo texto com os pormenores da história do Grande Prêmio, uma imagem do traçado e resultados, e o segundo é um lindo acervo fotográfico, cobrindo várias edições da prova. O site ainda tem dois vídeos, um sobre a morte de Irineu Corrêa, e este aqui, com imagens do GP de 1937, onde o italiano Carlo Pintacuda, com Alfa Romeo venceu um duelo histórico com Hans Stuck, com Auto Union:



Adooooro isso.

02 novembro, 2008

Na última curva

A temporada de 2008 ainda será discutida por muitos anos. Erros de uns aqui, punições a outros ali (justas? injustas? favorecimento? a quem? e o que importa agora?), e um título decidido na última corrida. Na última corrida não, praticamente na última curva.

O Grande Prêmio do Brasil de 2008, em Interlagos, foi o palco de uma das decisões de título mais apertadas da história. Lewis Hamilton, da McLaren, em seu segundo ano na categoria, liderava com seguros 7 pontos de vantagem. Bastaria um quinto lugar para o inglês garantir o título, independente dos resultados do desafiante Felipe Massa, da Ferrari, vice-líder do campeonato. O brasileiro era o primeiro piloto de seu país a chegar ao final com chances de ser campeão desde 1991, quando Ayrton Senna ficou com o título por antecipação, e isso acendeu a torcida de uma forma que talvez Interlagos nunca tenha visto antes. No grid de largada, Massa tinha a vantagem, largando na pole-position, e contando com a outra Ferrari de Kimi Raikkonen, o campeão do ano anterior, logo atrás, na terceira posição, ao lado de Hamilton, o quarto.

Com os carros alinhados no grid, faltando cerca de 10 minutos para a volta de apresentação, desaba uma chuva rápida, mas pesada o suficiente para a direção de prova suspender o procedimento de largada por mais 10 minutos e cogitar uma largada em movimento atrás do safety car. Não foi necessário. Mas mesmo assim, a balança, tão sensível, pendeu um pouco para Hamilton, já que a Ferrari tinha muitas dificuldades em obter um aquecimento ideal dos pneus em pista molhada, ao contrário da McLaren. Na largada, todos foram conservadores. Os cinco primeiros mantiveram suas colocações na primeira curva, embora Hamilton tenha perdido um pouco de tração e seu companheiro de equipe, Heikki Kovalainen, optado por não disputar o quarto posto com o inglês. Uma rodada de David Coulthard, da Red Bull no S do Senna provocou a entrada do safety car ainda na primeira volta. Foi a última participação do escocês vice-campeão mundial de 2001.

A chuva, contudo, já havia parado, e a maior parte da pista estava seca. Na terceira volta Giancarlo Fisichella, da nanica Force India, parou nos boxes e calçou compostos para pista seca. Quando a corrida foi reiniciada, ficou logo claro que a pista estava seca demais para os pneus intermediários, e algumas voltas depois todos os pilotos trocaram os pneus. Fisichella, havia algumas voltas em ritmo de pista seca, apareceu surpreendentemente em quinto, e se sustentou à frente de Hamilton por um bom tempo.

Lewis Hamilton havia perdido posições para Fernando Alonso e Sebastian Vettel, e ficou a primeira parte da corrida em sexto, abaixo do necessário para garantir o título mundial. Mas Vettel corria leve, e foi o primeiro a reabastecer, voltando na sexta colocação. Jarno Trulli, da Toyota, que surpreendera largando em segundo, teve problemas em manter o ritmo após o pit stop e caiu rapidamente. Hamilton passou a andar em quarto, apenas preocupado com a diferença para Kimi Raikkonen à sua frente, e Timo Glock, na sua perseguição. Massa e Alonso corriam sozinhos nas duas primeiras colocações, e a performance do brasileiro dava a impressão de que conseguiria fazer o que era necessário para garantir o título. Todos se perguntavam o que aconteceria com Hamilton.

Após o reabastecimento de todos, Massa voltou na liderança, com Vettel novamente em segundo, e em grande forma, com Alonso em terceiro, Raikkonen em quarto, Hamilton em quinto, seguido de longe por Glock. Novamente, Hamilton tinha a balança pendendo para o seu lado. A situação melhorou para o inglês quando Kovalainen assumiu o sexto posto, começando a atuar como escudeiro. Novamente Vettel (que continuava leve, e correndo como se estivesse numa Ferrari) teve que reabastecer. A equipe apostara em chuva durante a corrida, mas ela não veio. Massa agora liderava com certa folga, e Hamilton era o quarto.

Porém, poucos minutos depois a sorte parecia mudar. O céu enegreceu, e a oito voltas do fim, começou a chover novamente. Kovalainen foi um dos primeiros a parar para trocar os pneus, e com isso Hamilton perdeu seu escudeiro. Nas duas voltas seguintes, praticamente todos os pilotos fizeram pit stops para troca de pneus, exceto Timo Glock, que assumiu a quarta posição. Após esta rodada de pits, Massa liderava ainda com folga, Alonso era o segundo em mais um desempenho sólido do espanhol e da Renault, Raikkonen o terceiro, se aproximando do espanhol, seguido da Toyota de Glock, Hamilton e Vettel.

Mais uma vez, o alemão da Toro Rosso correu como um possuído na chuva, e o que parecia improvável aconteceu a três voltas do fim: se aproveitando de uma manobra de Robert Kubica (retardatário, mas no momento vinha mais veloz que os dois) ultrapassando Vettel e Hamilton, o alemão deixou a McLaren para trás. Hamilton, até então adotando uma atitude conservadora e paciente, precisou arriscar, balançar o carro a cada curva para tentar recuperar a posição - e o campeonato. A arquibancada incrédula e extasiada gritava com essa reviravolta nos últimos momentos, e nos boxes da Ferrari todos comemoravam como doidos.

As duas últimas voltas foram de muita luta vã por parte de Hamilton, que não tinha o carro tão equilibrado na chuva como em outras ocasiões, e não conseguia se aproximar de Vettel. Felipe Massa já tinha meia volta de vantagem, e não perderia aquela corrida, que dominou de forma soberba como nos anos anteriores em que esteve lá com Ferrari. Ele recebeu a bandeirada em primeiro. Interlagos quase veio abaixo, esperando apenas a confirmação do sexto lugar de Hamilton e do título do brasileiro.

Mas Glock, com pneus para pista seca, que, de início, o fez mais rápido que os concorrentes com pneus intermediários, não conseguiu sustentar o seu ritmo naquelas condições de pista. E, fazendo uma última volta lenta, como se patinasse no gelo, não pôde evitar a dupla ultrapassagem de Vettel e Hamilton na Curva da Junção, que leva ao setor da reta dos boxes (ainda havia a Curva do Café, mas aquilo é curva? :^P). A Ferrari ainda celebrava o título momentos depois de Lewis Hamilton cruzar a linha de chegada em quinto e se tornar o mais novo campeão mundial de Fórmula 1.

Monocromático falando do presente? É porque esta corrida já é História.